O que é real e o que é ficção em Biohackers? Nova aposta alemã da Netflix brinca de Deus
Biohackers, a série alemã original da Netflix que mostra várias ideias que parecem questões de ficção científica, pasmem, não está assim tão longe da realidade. Como toda obra de ficcional, toma certas liberdades artísticas quando apresenta situações que dependem de uma tecnologia biológica para continuar a história. Mas é tudo uma grande piração dos criadores? Não.
Confira o trailer da série
Um implante que permite ao usuário pagamentos sem cartão, celular ou dinheiro não só existe como é comumente utilizado na microchipagem de animais domésticos. Ao invés de ter informações do cartão de crédito, o microchip rfid contém dados do animalzinho e do dono. Ok, mas e aquele implante que libera drogas? Também já é usado há algum tempo, em casos de diabetes com a liberação periódica de insulina. Além disso, existem anticoncepcionais que são implantados e lentamente liberam hormônios.
Além da fabricação caseira de cerveja – que é viável faz tempo, a série apresentou um ratinho e plantas fluorescentes, pílula para mudar a visão no escuro, cogumelo com gosto de carne e remédio que ajuda a ficar mais tempo debaixo d’água. Alguns animais foram modificados para expressar uma proteína chamada GFP (proteína verde fluorescente) e, consequentemente, eles fluoresciam no escuro mostrando ser possível inserir um gene novo em um mamífero e ele, efetivamente, produzir a proteína ligada àquele gene.
Um exemplo famoso é da coelhinha Alba, apresentada pelo artista brasileiro Eduardo Kac. E o mesmo pode ser feito com plantas. Normalmente essa introdução da proteína fluorescente é feita para identificar onde algo está sendo produzido na planta, inclusive, já foi realizado com plantas como a Canabis, mostrada na série.
A visão no escuro usando um colírio é algo que a gente consegue ter? Não. Em 2007 o pesquisador Ilya Washington publicou um artigo abordando um corante verde que foi injetado intravenosamente em ratos tendo mostrado resultados de melhora da visão na faixa do infravermelho. Quase lá, mas ainda distante. Já ficar mais tempo debaixo d’água… assim como na série, é apenas uma percepção apesar da ideia ser cativante.
Já o cogumelo com “genes de gosto de carne” é algo que não faz muito sentido, pois tais genes não existem. Alguém que gosta de comida vai dizer que a experiência de um alimento vai além do gosto: é sobre a textura, o cheiro e a aparência. E, para tanto, é preciso que tenha mais do que apenas uma proteína específica. Porém existem nuggets feitos com células cultivadas em laboratórios… que nunca fizeram parte de um animal apesar de serem células de frango.
Com tudo isso em mente, as partes mais fantasiosas apresentadas na série são aquelas usadas para mudar o curso da história. Houve bastante exagero nos tempos de análise e resultados, afinal de contas, é necessário que haja momentos de tensão. Entretanto a ideia de mãos e bocas ficarem fluorescentes quando fumam uma planta com GFP não é real, uma vez que a planta não produz esse tipo de tinta.
A cura de todas as doenças genéticas e a produção frankensteiniana de humanos com sistema imune perfeito está tão perto da realidade como a estrela da morte de Star Wars. Pode fazer sentido teoricamente, mas a prática é completamente distinta. Existem terapias gênicas para algumas condições, por exemplo, atrofia muscular espinhal ou distrofia hereditária da retina e alguns tipos de câncer. Porém ainda há muitos anos de pesquisa pela frente para cada uma das condições genéticas que podem, eventualmente, serem submetidas à terapia genética.
E o caso mais grave é, evidentemente, o bioterrorismo com um vírus modificado inoculado em um mosquito. Esse tipo de pesquisa jamais seria realizada por ser absolutamente antiética, uma ideia desprezível. No entanto já foi testado a possibilidade de mosquitos se tornarem “vacinadores com asas”.
O grupo de pesquisa do geneticista Shigeto Yoshida modificou mosquitos na expectativa de que, quando eles se alimentassem do sangue de ratos, injetariam algo como uma vacina nesses roedores. Os resultados não foram muito animadores e, ainda assim, essa pesquisa era apenas uma prova de conceito e jamais foi pensada na liberação ao ambiente desses animais.
Por ser uma obra de ficção, se espera que nem todos os detalhes sejam exatamente iguais à realidade. No entanto, diretores e roteiristas adaptaram a história às diversas iniciativas já idealizadas o que é suficiente para despertar a curiosidade e dúvida nos espectadores, aproximando a ciência de laboratório ao cotidiano.
A Netflix confirmou a segunda temporada da série.
A análise é uma gentil colaboração do João Gervásio, Biológo, Mestre em Biociências e Biotecnologia e co-coordenador do IdeaReal, laboratório de Biologia Sintética da UFMG.